Diretrizes:
Anestesia para pacientes sob cuidados paliativos
Com o avanço das diretivas antecipadas de vontade e da medicina centrada no paciente, os anestesiologistas têm sido cada vez mais chamados a atuar em contextos complexos, especialmente em procedimentos destinados à melhoria da qualidade de vida de pacientes em cuidados paliativos. Esses cenários requerem abordagem individualizada, sensível e eticamente fundamentada, considerando limitações terapêuticas previamente estabelecidas, como a recusa de intubação traqueal e reanimação cardiopulmonar (RCP).
A American Society of Anesthesiologists (ASA) recomenda que qualquer decisão sobre a manutenção ou suspensão de DNR durante o período perioperatório seja tomada após discussão prévia entre o paciente e a equipe médica, com registro claro das intervenções aceitas ou recusadas.
A presente diretriz visa orientar o anestesiologista sobre o processo de tomada de decisão perioperatória diante dessas situações, promovendo segurança, respeito à autonomia do paciente e alinhamento interprofissional. Ao mesmo tempo que garante segurança aos pacientes e uma boa interação com as equipes clínicas e cirúrgicas.
Podemos dizer que o objetivo deste documento é orientar a conduta para anestesiologistas frente a pacientes sob cuidados paliativos que possuam diretivas contra intubação traqueal e RCP e necessitem de procedimentos cirúrgicos ou intervencionistas para melhora de qualidade de vida considerando:
A viabilidade técnica e ética do procedimento;
A segurança da abordagem anestésica necessária;
A autonomia do paciente e sua capacidade de compreensão dos riscos envolvidos;
A necessidade de decisão compartilhada com a equipe assistencial.
A conduta anestésica deve ser norteada pelos princípios da bioética:
Autonomia: respeitar a vontade do paciente, expressa verbalmente ou por diretiva antecipada;
Beneficência e não maleficência: avaliar se o procedimento trará alívio de sintomas ou risco desproporcional;
Justiça: oferecer acesso à informação e ao cuidado adequado, com equidade.
O Código de Ética Médica e a legislação brasileira reconhecem a validade das diretivas antecipadas e a necessidade de respeitá-las, mesmo em contextos agudos. O anestesiologista é corresponsável por garantir que esses limites sejam cumpridos durante o procedimento.
Sabemos que são situações desafiadoras e que muitas vezes o médico solicitante do procedimento não considera os riscos anestésicos em um paciente com reserva orgânica limitada, como no caso dos pacientes sob cuidados paliativos. Portanto é essencial relembrarmos todos estes pontos e instrumentar nosso corpo clínico com orientações de como proceder quando se depara com uma solicitação que pode trazer riscos ao paciente neste cenário: ex.: um paciente que tem ascite recorrente associada a alterações anatômicas que geram dificuldades no acesso da via aérea e necessita de uma endoscopia digestiva alta que habitualmente é conduzida sob sedação, mas ele já tem as diretrizes para não intubação e não reanimação. Conduzir o procedimento sob sedação pode resultar em um evento catastrófico que poderá abreviar o desfecho letal deste doente e muitas vezes é possível conduzir o exame sob anestesia geral e proceder a extubação e trazer o paciente para o mesmo status anterior em segurança, mas tudo isso precisa ser muito bem alinhado com o médico solicitante e com o doente e sua família.
Passo 1: Avaliação Inicial
O procedimento é indicado para melhora da qualidade de vida, com intencionalidade paliativa?
Se não, reavaliar a indicação com a equipe.
Passo 2: Identificação de Diretivas
O paciente possui diretiva antecipada contra intubação traqueal e RCP?
Se sim, seguir com avaliação da técnica anestésica descrevendo esta situação na avaliação pré anestésica.
Passo 3: Avaliação da Via Aérea e da Técnica anestésica habitual
Há possibilidade de realizar anestesia segura sem necessidade de via aérea invasiva?
Exemplos: bloqueios periféricos, sedacão consciente, analgesia sistêmica. Se sim, devemos realizar o procedimento explicando sempre os riscos associados.
Passo 4: Avaliação de Riscos
A técnica anestésica alternativa ao habitualmente utilizado e que é solicitado para este paciente apresenta risco elevado de falha ou complicações (hipoxemia, broncoaspiração, instabilidade)?
Se sim, proceder com discussão multiprofissional, fazendo contato telefônico ou presencial com o médico responsável pelo paciente para explicar os aspectos que envolvam a tomada de decisão da anestesia.
Passo 5: Comunicação com o Médico Assistente
Discutir benefícios, riscos e limites terapêuticos da proposta anestésica, sempre explicando que muitas vezes para aquele paciente naquela situação específica o mais seguro e indicado seria ter por exemplo a realização de uma anestesia geral como intubação traqueal, mas esta indicação precisa estar clara tanto para o médico assistente como para a família, que pode negar a realização do procedimento pelos riscos associados e possíveis desfechos, uma vez que nem sempre conseguimos garantir dependendo da condição clínica, que será possível a extubação. Tudo isso deve ser conversado de uma maneira calma e transparente com todos os envolvidos. É importante entender que um caso assim irá demandar mais tempo para estes alinhamentos durante a avaliação pré anestésica, portanto você deverá avisar ao coordenador do dia que se deparou com um caso desafiador que irá demandá-lo por mais tempo e até solicitar apoio para estas conversas e alinhamentos que nem sempre são fáceis.
Passo 6: Decisão Compartilhada
Realizar reunião com a equipe multiprofissional + médico responsável pelo paciente + paciente/família.
Esclarecer as opções e documentar a decisão.
Condutas Finais:
Paciente mantém diretiva e não aceita o risco:
Não realizar o procedimento;
Garantir suporte clínico e conforto.
Paciente modifica diretiva e aceita risco:
Adaptar plano anestésico com segurança e documentação formal;
Monitorar com rigor e alinhar com a equipe assistencial e paciente/família a conduta planejada, explicando seus pontenciais riscos.
Deparar-se com pacientes em fase final de vida que estão sob cuidados paliativos é um desafio enorme, pois muitas vezes o procedimento irá trazer qualidade de vida e dignidade neste momento para o paciente. Por outro lado não podemos nos esquecer dos riscos clínicos existentes e deixar tudo isso claro a todos envolvidos, desde o médico responsável e solicitante da intervenção até o próprio doente e sua família.
Alguns pontos para sempre nos lembrarmos junto a estas situações:
Utilizar linguagem clara, empática e acessível durante explicação dos riscos, lembrandi que o paciente não entende termos técnicos.
- Comunicar-se com o médico responsável do paciente de maneira clara, empática e demonstrando a preocupação em prevenir qualquer incidente que possa vir a agregar comoplicações ou abreviar a evolução do paciente.
- Garantir registro em prontuário das decisões e das diretivas revalidadas.
Priorizar sempre o controle de sintomas, conforto e dignidade.
Acionar o coordenador do dia e compartilhar a situação para ter apoio na tomada de decisão e conversas com as equipes caso existam dúvidas ou situações de conflito.
O papel do anestesiologista em pacientes sob cuidados paliativos vai além da administração de drogas anestésicas: trata-se de um elo fundamental entre intervenção técnica, escuta ativa e respeito ao fim de vida. Esta diretriz busca apoiar o julgamento clínico com base ética, prática e humanizada, fortalecendo a segurança do paciente e a integridade do cuidado perioperatório.
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