Diretrizes:
Hipotermia Acidental Durante Anestesia

Definição: Hipotermia é considerada a temperatura corporal central menor que 35,5°C e ocorre frequentemente durante o procedimento anestésico, devido à inibição do centro termorregulador, aumento da exposição corporal ao ambiente e diminuição do metabolismo e da produção de calor. A diminuição da temperatura corporal ocorre imediatamente após a indução de anestesia geral ou regional, decorrente da redistribuição de calor do compartimento central para o periférico. Nas intervenções cirúrgicas em que há exposição de cavidades corporais a perda de calor é maior.

Didaticamente, classifica-se hipotermia em leve (34 a 35,5 ºC), moderada (30 a 34 ºC) e grave (menor que 30 ºC).

Impactos da hipotermia acidental

A hipotermia perioperatória causa inúmeros efeitos indesejáveis, que têm início no intra-operatório e perduram até o pós-operatório. A indução da anestesia geral é responsável por uma redução de 20% na produção metabólica de calor, abolindo também respostas fisiológicas termorreguladoras, normalmente desencadeadas pela hipotermia. O principal mecanismo para a instalação da hipotermia é a redistribuição de calor do compartimento central para o periférico por condução e convecção circulatória, que leva à diminuição da temperatura central e ao aumento da periférica, porém sem alterar a temperatura corporal média e o conteúdo de calor do organismo.

O desenvolvimento da hipotermia pode ser dividido em três fases: inicialmente, ocorre redução rápida da temperatura central por redistribuição após indução anestésica; depois, na segunda fase, há redução linear da temperatura (0,5 a 1°C por hora) enquanto houver diferença entre a taxa de produção metabólica e a perda de calor para o ambiente. Após essa fase, a vasoconstrição é desencadeada e há restrição no fluxo de calor entre os compartimentos, proporcionando menor redistribuição interna de calor e menor perda de calor para o ambiente. A manutenção da produção metabólica de calor, apesar da perda contínua, gera um platô na temperatura que é capaz de restabelecer o gradiente normal entre os compartimentos; atinge-se, então, a última fase, caracterizada pelo novo equilíbrio térmico, agora em menor valor.

A anestesia contribui para diminuir a temperatura corpórea através da inibição direta da termorregulação hipotalâmica pelos anestésicos e a diminuição do metabolismo. A hipotermia é mais acentuada na anestesia combinada (anestesia geral associada à regional). Não podemos esquecer a exposição do paciente ao ambiente frio das salas cirúrgicas que aumenta a perda de calor, levando a quadros de vasoconstrição periférica, ativação do metabolismo do glicogênio e liberação do calor através da circulação periférica. Nas intervenções cirúrgicas em que há exposição de cavidades corporais pode haver perda maior de calor. Nos pacientes pediátricos (RN e prematuros) a imaturidade da resposta periférica ativa o metabolismo da gordura marrom, levando à liberação do calor.

A resposta ao frio inclui a instalação da vasoconstrição periférica, ativação do metabolismo do glicogênio e liberação do calor através da circulação periférica. Nos pacientes pediátricos (RN e prematuros) a imaturidade da resposta periférica ativa o metabolismo da gordura marrom, levando à liberação do calor.

A vasoconstrição causada pelos mecanismos de termorregulação diminui a tensão de oxigênio subcutâneo, que está relacionado ao aumento da incidência de infecção na ferida cirúrgica. A hipotermia possui efeito direto sobre a imunidade celular e humoral e efeito indireto através da diminuição da oferta de O2 aos tecidos periféricos.

A diminuição de 1,9 ºC na temperatura central demonstrou o aumento da incidência de infecções em pacientes hipotérmicos (19%) em relação aos mantidos normotérmicos (6%) sob aquecimento externo, inclusive com aumento do seu tempo de hospitalização em 20% (2,6 dias). A hipotermia, através da vasoconstrição, diminui a aproximação dos polimorfonucleares na ferida operatória, dificultando a destruição bacteriana, induzindo a produção de interleucinas X e II, aumentando as perdas de nitrogênio e diminuindo a produção de colágeno.

Em resumo: 

  1. Alterações Fisiológicas:

    • Redução de 20% na produção metabólica de calor após indução anestésica.
    • Abolição das respostas termorreguladoras pelo efeito da anestesia.
    • Redistribuição de calor do compartimento central para o periférico.
  2. Fases de Desenvolvimento:

    • Fase 1: Redução rápida da temperatura central por redistribuição de calor.
    • Fase 2: Redução linear da temperatura (0,5 a 1°C por hora).
    • Fase 3: Estabilização em um novo equilíbrio térmico com temperatura menor.
  3. Fatores Contribuintes:

    • Inibição da termorregulação hipotalâmica e redução metabólica pelos anestésicos.
    • Maior impacto na anestesia combinada (geral e regional).
    • Perda de calor pelo ambiente frio da sala cirúrgica e exposição de cavidades corporais.
    • Respostas imaturas em pacientes pediátricos (RN e prematuros) devido à ativação do metabolismo da gordura marrom.
  4. Efeitos Clínicos Adversos:

    • Vasoconstrição periférica:
      • Redução da tensão de oxigênio subcutâneo.
      • Aumento da incidência de infecções na ferida cirúrgica.
    • Comprometimento imunológico:
      • Efeito direto sobre imunidade celular e humoral.
      • Efeito indireto pela diminuição da oferta de oxigênio aos tecidos periféricos.

Riscos Adicionais:

    • Aumento da incidência de infecções em pacientes com redução de 1,9°C na temperatura central (19% vs. 6% em normotérmicos).
    • Prolongamento do tempo de hospitalização em 20% (em média, 2,6 dias a mais).
    • Dificuldade na destruição bacteriana devido à diminuição da aproximação dos polimorfonucleares na ferida operatória.
    • Redução da produção de colágeno e aumento das perdas de nitrogênio.

Impactos no Desempenho Metabólico:

    • Ativação do metabolismo do glicogênio e liberação de calor pela circulação periférica.
    • Indução da produção de interleucinas (IL-X e IL-2).

Esses efeitos destacam a importância da prevenção e manejo adequado da hipotermia durante o período perioperatório para minimizar complicações.

  1. Aquecimento da Sala Cirúrgica:

    • Manter a temperatura da sala de cirurgia entre 23°C e 25°C para reduzir a perda de calor do paciente.
       
  2. Aquecimento Ativo:

    • Utilizar dispositivos de aquecimento, como mantas térmicas, especialmente em procedimentos de longa duração ou em pacientes com fatores de risco para hipotermia.
       
  3. Aquecimento de Fluidos e Soluções:

    • Administrar fluidos intravenosos e irrigação aquecidos para evitar a redução da temperatura corporal.
       
  4. Cobertura Adequada:

    • Minimizar a exposição corporal do paciente, cobrindo áreas não envolvidas no procedimento para reduzir a perda de calor.
       
  5. Monitorização:
    • Aferir e registrar a temperatura corporal em intervalos regulares durante o período perioperatório para detectar precocemente alterações térmicas.
  1. Medidas de Aquecimento Ativo:

  2. Mantas térmicas de ar forçado: Utilizar cobertores ou mantas aquecidas por sistemas de ar quente, cobrindo o paciente o máximo possível.
  3. Aquecimento de Fluidos e Sangue:
    • Aquecer soluções intravenosas e produtos sanguíneos antes da administração.
    • Utilizar aquecedores de fluido em linha para manter a temperatura das infusões.
  4. Controle da Temperatura Ambiental:

    • Elevar a temperatura da sala de cirurgia para minimizar a perda de calor por radiação.
  5. Redução da Exposição Corporal:

    • Cobrir áreas do corpo não envolvidas no procedimento com mantas ou cobertores aquecidos.
    • Minimizar o tempo de exposição de cavidades corporais durante o procedimento.
  6. Aquecimento de Gases Inspirados:

    • Utilizar sistemas de umidificação e aquecimento de gases anestésicos para reduzir a perda de calor pelo trato respiratório.
  7. Monitorização Contínua da Temperatura:

    • Realizar aferição frequente da temperatura corporal  (esofágica ou nasofaríngea) para ajustar as intervenções de aquecimento conforme necessário.
  8. Estratégias Específicas para Casos Graves:

    • Reaquecimento interno: Nos casos de hipotermia severa, considerar técnicas mais invasivas, como lavagem peritoneal ou torácica com soluções aquecidas.
    • Circulação extracorpórea: Em casos extremos, pode ser necessária para reaquecimento rápido e controlado.
  9. Suporte Multidisciplinar:

    • Envolver a equipe cirúrgica e de anestesia para implementar medidas rápidas e coordenadas.

Essas estratégias ajudam a reverter a hipotermia de maneira segura e eficaz, reduzindo complicações associadas no intraoperatório.

Hipotermia pode levar a :

  1. Aumento da incidência de eventos cardiovasculares: isquemia/angina instável, infarto agudo do miocárdio, arritmias e parada cardíaca.
  2. Ocorrências de tremores pós-operatórios associados a um aumento no consumo de oxigênio
  3. (VO2) com o intuito de aumentar a produção de calor;
  4. Hiperatividade simpática: aumento dos níveis de catecolamina plasmática, com vasoconstrição, aumento da frequência cardíaca, pressão arterial, resistência vascular sistêmica e periférica (RVS e RVP);
  5. Redução da função plaquetária e coagulopatia (diminuição da cascata da coagulação), levando a um aumento das perdas sanguíneas e aumento da necessidade de transfusão alogênica;
  6. Sensação de desconforto térmico e insatisfação do paciente;
  7. Aumento do tempo de metabolização das drogas anestésicas, com prolongamento da ação e consequente aumento do tempo de recuperação pós-anestésica, e em alguns casos, do tempo de internação;
  8. Função imunológica prejudicada relacionada com a inibição da fagocitose e da produção de anticorpos causando um aumento na taxa de infecção hospitalar, relacionada mais fortemente à ferida operatória.
  9. Aumento da permanência do paciente na Sala de Recuperação Pós Anestésica.
  1. Manter a normotermia (superior a 36°C) contribui para minimizar o balanço nitrogenado negativo no pós-operatório. Atenção para o risco de Hipertermia;
  2. O aquecimento de líquidos utilizados na reposição volêmica durante a cirurgia e a insuflação de ar aquecido diretamente na superfície do paciente diminuem a queda da temperatura central. A utilização de calor irradiado para aquecer o paciente antes do procedimento cirúrgico, evita a perda de calor central para a periferia devido à vasodilatação causada pelos anestésicos.
  3. Manter a superfície corpórea exposta o mínimo possível, inibindo a perda de calor;
  4. Para que haja a transferência de quantidades consideráveis de calor através da superfície da pele, há necessidade de, pelo menos, meia hora de aquecimento prévio.
  5. A resolução do CFM 2174/2017 orienta a monitorização da temperatura em todos os pacientes nos extremos de idades e procedimentos com tempo estimado superior a 1 hora.

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