Infográfico

Diagnóstico
A intoxicação por anestésicos locais é diagnosticada por uma combinação de diversos sinais clínicos.
Os sinais e sintomas de intoxicação podem variar muito, mas frequentemente seguem uma progressão que começa com excitação do sistema nervoso central (SNC), que pode apresentar-se como dormência perioral, gosto metálico, zumbido, e pode evoluir para convulsões e depressão do SNC. Os anestésicos locais ultrapassam a barreira hematoencefálica e os sintomas que causam dependem da sua concentração. Baixas concetrações podem produzir depressão do SNC enquanto doses mais altas podem resultar em excitação do SNC e convulsões. As convulsões são resultados da inibição dos centros inibitórios. As convulsões são tipicamente de duração curta e autolimitadas. O uso de benzodiazepínicos irá ser essencial no tratamento das convulsões. O mecanismo de ação envolve a ligação ao sítio benzodiazepínico do receptor GABA-A, o que resulta em um aumento da condutância ao íon cloreto, causando hiperpolarização da membrana neuronal e redução da excitabilidade neuronal para interromper a atividade convulsiva.
Do ponto de vista cardiovascular, os sintomas serão em um afase mais tardia onde há uma concentração maior de anestésicos sistêmicos. Pode haver hipertensão, taquicardia, seguida por bradicardia, arritmias e, em casos graves, parada cardíaca.

Os sinais de intoxicação por anestésicos locais podem começar precocemente durante a injeção do anestésico local, como por exemplo com uma injeção inadvertida, como também pode demorar mais para surgir pois vai estar associada a absorção tecidual do anestésico.
Um dos pontos críticos para o diagnóstico de uma potencial intoxicação por anestésico local pode ser:
- Avaliar se a dose de anestésico local respeitou a dose tóxica ou chegou muito próximo a ela
- Avaliar se houve injeção intravascular clara ou possível que justifique a instalação do quadro de toxicidade
Fala-se no uso da dosagem sérica da concentração de anestésicos, no entanto na prática clínica sabemos que há dificuldade na realização destas dosagens e muitas vezes os quadros tem instalação rápida, que demanda tomada de decisão imediata, sem conseguir aguardar os resultados laboratoriais.
A American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine (ASRA) recomenda que todos os médicos que usam anestésicos locais estejam familiarizados com os sinais de toxicidade sistêmica e sigam algoritmos de manejo, incluindo a terapia com emulsão lipídica intravenosa como tratamento de primeira linha em casos de toxicidade sistêmica grave.
Mecanismo de toxicidade dos AL
A toxicidades dos AL pode ser explicada a nível celular e no sistema cardiovascular por diferentes mecanismos. Seguem os principais mecanismos conhecidos:
- Inibição de Canais Iônicos: AL causam bloqueio dos canais de sódio e inibição dos canais de potássio que pode levar a falhas na transmissão química e aumento da liberação de catecolaminas, contribuindo para efeitos adversos no sistema nervoso central
- Aumento do Cálcio Citoplasmático: os AL podem aumentar os níveis de cálcio citoplasmático, resultando em toxicidade celular
- Alteração do Metabolismo Celular: os ALs podem interferir na fosforilação oxidativa e na fisiologia mitocondrial, resultando em produção de ROS, o que pode levar à morte celular
- Disfunção Mitocondrial: A sobrecarga de cálcio mitocondrial e declínio do potencial de membrana que ocorre com doses tóxicas de AL, resulta em produção de espécies reativas de oxigênio (ROS) e danos ao DNA, levando à apoptose e necrose celular e disfunção miocárdica
- Efeitos Hemodinâmicos: Em concentrações tóxicas, os ALs podem causar vasodilatação periférica e depressão da contratilidade miocárdica, levando a uma diminuição do débito cardíaco e da pressão arterial
- Inibição dos Canais de Potássio ATP-sensíveis: anestésicos como bupivacaína inibem os canais K-ATP de forma seletiva, sendo mais potentes no bloqueio dos canais cardíacos do que dos canais vasculares. Assim há uma maior disfunção cardíaca ao alterar a repolarização e a excitabilidade celular
- Bloqueio dos Canais de Sódio: Os ALs bloqueiam os canais de sódio dependentes de voltagem nos cardiomiócitos, o que diminui a condução elétrica e pode levar a arritmias, bloqueio atrioventricular e, em casos graves, até mesmo parada cardíaca
Não podemos deixar de citar o conhecido mecanismo “fast in slow out” dos anestésicos locais. Os anestésicos locais exibem alta afinidade pelos canais de sódio quando estes estão abertos e inativados durante potenciais de ação de alta frequência, como ocorre durante a dor ou arritmias cardíacas.
O bloqueio dos canais de sódio abertos ocorre pelos anestésicos locais e é caracterizado por uma rápida associação do anestésico ao canal durante a despolarização e uma dissociação mais lenta durante a repolarização, resultando em um prolongamento do período refratário.
Os anestésicos locais podem estabilizar o estado de inativação lenta dos canais de sódio, o que contribui para a “saída lenta” do bloqueio dos canais iônicos. Este estado de inativação lenta é induzido por despolarizações prolongadas e requer um tempo mais longo para recuperação.
Características dos anestésicos locais
O que determina a potência dos AL é primordialmente a lipossolubilidade. Quanto maior a lipossolubilidade, maior a potência anestésica. A margem de segurança é menor para os anestésicos mais lipossolúveis, pois anestésicos locais muito potentes, de alta lipossolubilidade e afinidade proteica são também mais cardiotóxicos.
Latência dos anestésicos locais: A latência depende da concentração relativa da forma lipossolúvel não ionizada e a forma ionizada hidrossolúvel. Os AL com pka (pH no qual a fração não ionizada é igual a fração ionizada) próximo do fisiológico apresentarão maior concentração de base não ionizada, que pode passar através da membrana da célula nervosa, tornando o início de ação mais rápido (menor latência). Doses máximas recomendadas dos diferentes anestésicos locais:

A bupivacaína, a etidocaína, e a tetracaína produziram efeitos depressores maiores em concentrações mais baixas do que lidocaína, mepivacaína ou prilocaína. Além disso, a bupivacaína é mais arritmogênica do que a lidocaína. A bupivacaína bloqueia o nó sinoatrial (SA); prolonga o intervalo PR e induz um tipo de arritmia reentrante. Isto é pelo fato de que a bupivacaína está ligada mais fortemente ao sítio do receptor dentro dos canais de sódio (fast in, slow out) do que a ropivacaína (fast in, middle out) e a lidocaína (fast in, fast out); especialmente quando observamos o músculo cardíaco. A ropivacaína é mais segura do ponto de vista cardiovascular do que a bupivacaína e também menos potente. Provoca alterações hemodinâmicas similares às causadas pela bupivacaína.
Como evitar? Dose total e dose teste
Devemos sempre respeitar a dose máxima de anestésico local para cada paciente, considerando as vias de absorção, que sempre será maior na administração intravenosa até a administração subcutânea, que é a que possui menor absorção.

Dose teste
Tem como objetivo identificar se a agulha ou o cateter foram introduzidos no espaço subaracnóideo ou em veias inadvertidamente. A aspiração da agulha ou cateter para identificar a presença de sangue ou líquor pode ser útil para prevenir injeções inadvertidas de anestésico local, mas a incidência de teste falso-negativo é alta. A dose teste mais utilizada é de 3 ml de anestésico local (lidocaína) contendo 5mcg/ml de adrenalina por ml (1:200.000). A dose deve ser suficiente para que, introduzida no espaço subaracnoideo, determine a anestesia e, introduzida no interior de um vaso sanguíneo, produza aumento médio da frequência cardíaca em 30 batimentos/ minuto entre 20 a 40 segundos após a injeção. Em pacientes que utilizam beta bloqueador, não se observa aumento nos batimentos cardíacos, podendo inclusive, haver diminuição dos mesmos. Nestes pacientes, o aumento de pressão arterial sistólica maior ou igual a 20 mmHg é indicador de injeção intravascular. O paciente deve estar sempre monitorizado. A realização da dose teste é sempre recomendada.

Tratamento
O tratamento da intoxicação por anestésicos locais tem três pilares fundamentais: controle de convulsões, suporte avançado de vida cardíaca (ACLS) e administração imediata de uma emulsão lipídica a 20%.
Passo a passo do tratamento:
1) interromper a administração da droga e MANTER CONTATO VERBAL COM O PACIENTE.
2) ofereça oxigênio a 100% por máscara. O oxigênio aumenta o limiar convulsivo e previne hipoxemia, melhorando o prognóstico do quadro. A hipoxemia, hipercarbia e acidose aumentam a toxicidade.
3) coloque o paciente em decúbito dorsal horizontal ou leve Trendelenburg, a fim de melhorar as perfusões cardíaca e cerebral;
4) acesso venoso estabelecido (deve ser sempre puncionado antes do início da anestesia locorregional);
5) mantenha monitorização adequada de oxigenação (oximetria de pulso), ritmo e frequência cardíaca (eletrocardiografia contínua) e pressão arterial.
6) Intubação orotraqueal, se necessário
7) Convulsões: Midazolam 0,05-0,1 mg/kg. Não recomendamos de maneira geral o propofol pelo risco de instabilidade hemodinâmica, mas pode ser utilizado.
8) Ressuscitação Cardiopulmonar (RCP) por períodos prolongados pode ser necessária. Recomenda-se a utilização de emulsão lipídica 20%, uma solução utilizada na nutrição parenteral que pode ser usada como “antídoto” para tratar o colapso cardiovascular da intoxicação.
Os mecanismos propostos para o efeito de reversão da intoxicação por anestésicos locais envolvem a formação de uma fase lipídica que extrai as moléculas de anestésico local da fase aquosa do plasma, há difusão da solução lipídica nos tecidos promovendo interação direta com os anestésicos locais e inibição do metabolismo oxidativo. Além disso, a solução lipídica possui efeito inotrópico positivo direto.
TRATAMENTO PARA PARADA CARDÍACA INDUZIDA POR ANESTÉSICO
LOCAL COM EMULSÃO LIPÍDICA ENDOVENOSA
- POR FAVOR, MANTENHA ESTE PROTOCOLO ADJACENTE AO KIT DE SOLUÇÃO LIPÍDICA
Na eventualidade de parada cardíaca induzida por anestésico local refratária às medidas terapêuticas convencionais, e em simultâneo com ressuscitação cardiopulmonar, deve iniciar o seguinte regime de solução lipídica a 20% por via endovenosa:
Montar um kit específico contendo 2 frascos de solução lipídica a 20% (Lipofundin) + Seringa 50 ml + SF 0,9% 500ml
- Solução lipídica a 20% 1,5mL/kg em 1 minuto
- Iniciar imediatamente perfusão a 0,25 mg/kg/min
- Repetir bolos a cada 3 – 5 minutos (dose máxima de 3 ml/kg) até restabelecimento da circulação
- Manter perfusão contínua até estabilidade hemodinâmica.
- Se diminuição da pressão arterial, aumentar a velocidade de perfusão para 0,5ml/kg/min
- Dose total máxima recomendada de 10 ml/kg
Em termos práticos, para ressuscitar um adulto com 70 kg de peso:
- Utilizar bolsa de 500mL de Lipofundin 20% e seringa de 50ml
- Retirar 50ml e administrar imediatamente, por via endovenosa
- Em seguida, colocar o restante do conteúdo da bolsa para administração endovenosa por meio de sistema de soro (macrogotas) para correr em 15 minutos.
- Repetir novamente o bolus inicial até duas vezes se não for restaurada a circulação espontânea. Se usar a solução lipídica para tratamento de toxicidade por anestésico local, por favor, relate-o em lipidrescue.org.

Inúmeros trabalhos de pesquisa sugerem um possível benefício do uso de emulsões lipídicas endovenosas como antídoto em situações com potencial risco de vida devido cardiotoxicidade da bupivacaína, mepivacaína, ropivacaína, haloperidol, antidepressivos tricíclicos, beta bloqueadores lipofílicos e bloqueadores dos canais de cálcio.
Deve-se atentar aos riscos da infusão de altas doses de soluções lipídicas como potencial sobrecarga volêmica, lesões pulmonares agudas e aumento abrupto da osmolaridade plasmática.
Referências bibliográficas
AAGBI Safety Guideline. Management of Severe Local Anaesthetic Toxicity 2. Disponível em:
http://www.aagbi.org/sites/default/files/la_toxicity_2010_0.pdf.
Weinberg, GL. Lipid Emulsion Infusion Resuscitation for Local Anesthetic and Other Drug Overdose. Anesthesiology 2012; 117:180 –7.
Cave, G; Harvey, M; Graudins A. Review article: Intravenous lipid emulsion as antidote: A summary of published human experience. Emergency Medicine Australasia (2011) 23, 123–141.
Pitkanen M, Feldman HS, et al, Chronotropic and inotropic effects of ropivacaine, bupivacaine, and lidocaine in the spontaneously beating and electrically paced isolated, perfused rabbit heart.
Reg Anesth 17:183-92, 1992.